segunda-feira, 22 de junho de 2015

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E já falta tão pouco... Falta tão pouco que parece, já começo a sentir saudades... Doentia existência, que me faz sentir falta do que me faz doer.
Passou a sensação de leveza, de satisfação, de dever cumprido para regressarem as leituras, a sensação de insatisfação, de insegurança... Regressaram-me as teias e os atavismos, os poços e as linhas de quádruplo sentido. E já falta tão pouco... Olho a flor e sinto-a quase a brotar. Olho pelo binóculo e avisto terra. Mas eis que regressam a chuva, as tempestades, os ventos que me obrigam a parar. Flutuo apenas. Reflito, conjeturo, esquematizo e volto a refletir. Regressaram-me as dúvidas, os anseios e as teias. Ativaram-me o sistema de assistência à travagem. É chegado o momento de concluir, de conjeturar, de tomar uma posição. Dor incómoda esta, que me obriga a uma conclusão solitária, brava, corajosa. Que me obriga a sair de casa e mostrar a pele branca e sedenta de sol. Regressaram-me o medo e a ansiedade. Range já a engrenagem que parecia tão bem oleada. O medo tolhe-me as articulações, espreme-me as intenções, atrapalha-me o devaneio, constrange-me o sonho. E já falta tão pouco... Só preciso de um pouquinho mais de força. Vamos, coragem. Está quase!

quinta-feira, 4 de junho de 2015

O meu melhor amigo

Todos os dias eu via aquela humana à janela olhando por longos períodos de tempo as plantações que o meu dono cultivava afincadamente.
Todos os dias essa humana ia à janela sacudir lençóis, cobertores e pijamas. Mais ninguém naquele bloco de janelas fazia o mesmo, apenas aquela humana cujos cabelos esvoaçavam e me pareciam dançar felizes ao sabor do vento.
Durante meses, ladrei àquela humana. Passava horas questionando-me o que significava aquele ritual que mais ninguém realizava. Seria essa a sua forma de saudar as pessoas, os pássaros e a toupeira que vivia no jardim? Seria a forma de ela esvaziar as suas tigelas e assim ficar à espera que o vento lhe trouxesse ração fresca? Era estranho. Os meus humanos não faziam isso. A minha humana fazia-o, talvez, a cada mudança da lua e às vezes até coincidia com o meu banho. Argh! banho...
E eu ladrava àquela humana. E ela continuava a olhar-me fixamente, a mim e ao campo cultivado pelo meu dono.
Eu era o dono do meu pátio, chefiava uma matilha de formigas, gafanhotos e louva-a-deus e ela era a dona daquele bando que eu desconhecia. E assim se foram passando os meses. Eu ladrando, ela fixando.
Entre dormidas, correrias e latidos ia olhando aquela janela e os olhos daquela humana tentando perceber as suas reais intenções. Quereria ela usurpar o produto do trabalho dos meus donos? Quereria ela colher apenas algumas flores? Teria fome? Pretenderia ela COMER DAS MINHAS TIGELAS?!? Ah... isso nunca iria acontecer. Ou estaria ela sozinha e ocupava o seu tempo contemplando a bela simetria criada pelo meu dono entre batatas e cenouras, jacintos e cameleiras?
Ou quereria ela tornar-se minha amiga? Nunca tive amigos humanos...
Os meus donos nunca foram meus amigos, menos ainda a partir do dia em que chegou um elegante poodle a nossa casa e que a minha dona tratava com muito carinho.
Não sei dizer quanto tempo passou desde que o Caracolinho chegou até que eu fugi e fui resgatado por aquela humana a quem eu ladrava.
Como não compreendo o tempo dos humanos, posso apenas dizer que nasceram e partiram muitos sois e muitas luas. Brilharam muitas estrelas nos meus olhos e caíram milhares de pesadas gotas de chuva sobre o meu pelo caramelo. Os banhos deixaram de acontecer, a chuva lavava-me e o vento secava-me. Começaram a repetir-se as refeições de tigela vazia. Seria da crise financeira que ouvia a minha dona contar às vizinhas e às amigas sempre por um estranho aparelho que ela não largava nunca? Era estranha aquela coleira dela. Muito diferente da minha. Talvez porque fosse humana e eu agora não passava de mais uma obrigação no quintal.
As chineladas, essas começaram a ser cada vez mais frequentes, quer eu roesse um chinelo de que a minha humana gostava muito, quer eu estivesse placidamente deitado no tapete da entrada - o melhor sítio da casa. Nem em cachorro, que reconheço fazia muita asneira, levava tanta chinelada.
A certa altura, deixei de as sentir e começaram a funcionar como uma espécie de massagem lombar ora para afastar os inúmeros seres que teimavam em povoar o meu outrora lustroso e brilhante pelo ora para o escovar e afastar a pelagem que teimava em cair.
Não sei explicar como, já que em cachorro meu pai me havia ensinado que podíamos confiar nos humanos pois estes viam-nos como os seus melhores amigos, deixei de acreditar. Deixei de confiar. Deixei de ladrar. Deixei até de ladrar à humana de cabelos dançantes.
Percebi que ela olhava para mim de forma diferente. Não sei explicar bem como, os canídeos não aprendem a falar sobre os seus sentimentos como os humanos, apenas aprendemos a expressa-los da forma mais genuína que conhecemos, demonstrando o nosso afeto, o nosso carinho, a nossa atenção para com o nosso humano.
Depois de assistir a muitos desabrochar e cair das flores das cameleiras, eu do meu pátio, ela da sua janela, deixei de ver os olhos falantes da humana dos cabelos dançantes.
 
Um dia bateram à porta. Eu, que antes da chegada do Caracolinho era o primeiro a receber quem chegava a nossa casa, agora só conseguia ouvir vozes, algumas alegres e bem vivas, outras elevadas, ferozes e zangadas. E de entre todas elas, destaquei uma voz doce e serena. Parei de farejar e concentrei-me nela. Fiquei à espera. O meu olfato não conseguia identificar aquele odor, a minha audição não reconhecia a voz doce e serena mas os meus olhos encheram-se de estrelas quando reconheci a humana dos cabelos dançantes. Vinha-me buscar.